Crítica The Underground Railroad: a verdadeira face da América

Os Estados Unidos são um país problemático. Seu presente é condenável e o passado, vergonhoso. Ocorre que de tanto mentirem ser a terra da liberdade, seu povo acreditou – ou ao menos fingiu acreditar – e há tempos exige que tal mensagem seja verdade.

Estamos muito distantes da propaganda virar realidade. Os costumeiros casos de racismo contra negros, latinos e asiáticos, por exemplo, bem mostram que aquela sociedade, assim como a brasileira e todas as outras do mundo, tem muito a evoluir.

Todavia, um aspecto precisa comemorado: as liberdades democráticas, ainda que mais frágeis do que o alardeado, são suficientes para permitir uma produção cultural crítica e transformadora. Há ainda muito ufanismo, bandeiras norte-americanas tremulando em várias obras. Em contraponto, também temos trabalhos como Amend: The Fight for America, série documental apresentada por Will Smith; Judas and the Black Messiah, filme dirigido por Shaka King; e The Underground Railroad, livro escrito por Colson Whitehead.

Antes da abolição da escravatura nos EUA, que ocorreu em 1865 após uma guerra civil, abolicionistas criaram uma rede de rotas secretas e abrigos para ajudar escravos a fugirem para estados onde pudessem ser livres ou para o Canadá. Esse sistema de fuga ficou conhecido como underground railroad. Ainda que não fosse uma ferrovia subterrânea, John Rankin, famoso abolicionista “condutor” à época, disse que “foi chamado assim porque quem tomasse passagem desaparecia publicamente como se fosse de fato para debaixo da terra”. Cabe frisar que tal terminologia, com “estações” e “condutores”, foi adotada porque a ferrovia era o meio de transporte utilizado no período.

Whitehead, em seu livro publicado em 2016, tomou a liberdade criativa de transformar a rota em uma literal rede ferroviária no subsolo. Assim, quando sua protagonista inicia a fuga em direção à liberdade, acaba sendo levada para debaixo da terra.

O livro, que recebeu o prestigioso Prêmio Pulitzer para ficção, foi agora adaptado em minissérie pelo diretor Barry Jenkins, vencedor do Oscar pelo drama Moonlight. O resultado, um trabalho dividido em dez episódios, é primoroso.

Na produção televisiva, assim como no livro, quando Cora (Thuso Mbedu) embarca pela primeira vez no trem, o condutor diz para ela olhar para fora e ver a verdadeira face da América. Tudo que ela enxerga é escuridão, já que estão no subsolo, e essa é a poderosa mensagem que a obra nos transmite.

Ainda que a narrativa se passe por volta dos anos 1850, Whitehead, que fez uma vasta pesquisa histórica antes de escrever, traz elementos de outras eras, até mesmo pós-abolição, para construir uma rota exasperante. Ideias como a eugenia são incorporadas em uma trama imperdível.

Desde os sucessos de Chernobyl e Watchmen não aparecia uma minissérie para nos deixar tão maravilhados. A beleza fotográfica misturada à dureza da realidade faz lembrar The Handmaid’s Tale.

Mbedu vive uma protagonista única, difícil de ser encontrada. Sua mistura de dor, força e perseverança dá vida a uma personagem inesquecível. Joel Edgerton, que incorpora o vilão Ridgeway, é igualmente marcante, nunca o vi tão bem em tela. Ainda há dois outros atores, entre tantos excelentes, que merecem menção: o jovem Chase Dillon, que surpreende como Homer, e Sheila Atim, que traz à vida Mabel com uma presença em cena que não me recordo de encontrar desde Lupita Nyong’o em 12 Years a Slave.

Do roteiro à direção, passando por figurinos, cenários, atuações, fotografia, trilha musical e efeitos sonoros, temos um trabalho emblemático, daqueles que nos fazem querer saber mais sobre o assunto e inspiram. A verdadeira face da América, ainda que cruel, precisa ser encarada.

Nota (0-10): 10

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