Artigo: o Eurovision tem muito a ensinar

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Não é segredo para ninguém que as premiações norte-americanas estão em crise. O Oscar, por exemplo, registrou seu recorde negativo em 2021, quando apenas cerca de 10 milhões de pessoas conferiram a cerimônia, um número abissal se comparado com os 42 milhões de telespectadores de 2010.

Depois de chegar ao fundo do poço, o Oscar até se recuperou um pouco, mas continua com audiência decepcionante. Algo triste, mas nada surpreendente. Durante a última década, já víamos essa tendência de fuga do público. Outras cerimônias sofrem com o mesmo problema, como o Grammy e o Globo de Ouro.

Há uma conjunção de fatores que explicam essa tendência. O primeiro é que ingressamos na era dos streamings e a programação como um todo da TV convencional vem perdendo espaço com a proliferação de internet rápida e opções de conteúdo online.

Temos também a questão geracional. Os grandes eventos culturais estão com dificuldade para atrair pessoas mais jovens, que são hiperconectadas e acostumadas com um feed personalizado.

Outro fator é a quantidade de escândalos envolvendo a indústria do entretenimento. Desde o caso mais emblemático, que tirou o Globo de Ouro do ar um ano, ao preconceito estrutural de sempre. Todo mundo sabe que há queerfobia, racismo e misoginia. As premiações tentam apagar o fogo chamando apresentadores mulheres e pessoas não brancas, mas o incêndio continua a existir. Há muitos discursos bonitos e pouca ação de fato.

Chegamos ao fator foco deste artigo: a chatice. Premiações como o Emmy e o Oscar têm facilmente três horas de duração ou mais. Se fosse bem aproveitado, seria o tempo ideal. Entretanto, não é.

A sensação é de que passamos a maior parte do tempo vendo propagandas do intervalo comercial — bem-vindos à nação em que tudo, até mesmo a saúde da população, gira ao redor de dinheiro.

Quando voltamos à transmissão da cerimônia, os blocos são engessados e as piadas, sem graça. Os vencedores fazem agradecimentos quase sempre desinteressantes em que citam mil e um nomes, do executivo do estúdio até o cachorro da família. Criou-se assim um fervoroso debate: deixar que falem livremente ou cortar após determinado tempo? Ambas as opções são ruins.

A verdade é que, com poucas exceções, nós não estamos vendo a cerimônia pelos discursos — vazios e por vezes hipócritas —, mas pelo espetáculo. Onde está o espetáculo?

A última vez que lembro de ter ficado extasiado com o que via no Oscar foi em 2017, com a abertura que prestava homenagem ao filme La La Land. Após isso, a apresentação de Shallow foi bonita, mas porque Lady Gaga e Bradley Cooper arrasaram, não por ser algo espetacular. A edição deste ano nem me dei ao trabalho de assistir.

Todo o vigor e o senso de que estamos assistindo a um grande espetáculo, algo que falta do Emmy ao Grammy, passando por todo o resto, tem de sobra no Eurovision. A grande final de 2023, ocorrida no sábado, 13 de maio, direto de Liverpool, foi uma ode à extravagância.

Por vezes cafona, até mesmo boba, doses grandes de loucura. Sempre interessante. A cerimônia tem os ingredientes certos em sua mistura: apresentadores simpáticos, muitos números musicais bem produzidos, disputa, público ensandecido, participação popular, nervosismo durante a contagem dos votos, uma profusão de cores, luzes, brilhos, fogos.

Um bom exemplo de como o Eurovision sabe dar aula no quesito entretenimento e inclusão foi o número musical com drag queens performado durante uma das semifinais. Sabem o que foi mais genial? Após esse número, entrou um quadro com crianças acompanhando a cerimônia, uma forma não dita, mas escancarada de dar um tapa em conservadores que acham que drag queens são um perigo para menores de idade.

Todo isso com muito amor, música e emoção. Se fosse nos EUA, provavelmente fariam como um discurso em tom educativo ou com uma piada de gosto duvidoso. Falta criatividade!

Outro exemplo: o Eurovision soube usar muito bem do seu soft power em defesa da Ucrânia na questão da invasão russa. Dos croatas esculachando indiretamente Putin e Lukashenko a inúmeros artistas vindos da Ucrânia para fazer apresentações sensíveis, a mensagem comove, diverte, é eficaz.

O que os EUA fizeram? Chamaram Zelensky para discursar em cerimônia. Isso é muito sem graça. É impossível que não tenha um único produtor ou roteirista com capacidade mental para criar alguma coisa melhor que o óbvio.

A cerimônia do Eurovision, que neste ano teve a melhor audiência de sua história no Reino Unido, acerta também em facilitar o acesso de pessoas de qualquer parte do mundo. Enquanto Oscar e Emmy são cada vez mais difíceis de acompanhar, por causa dos direitos de transmissão, o Eurovision é todo transmitido de graça e ao vivo no canal do Youtube. Você só gasta se quiser votar, medida utilizada para barrar fraudes.

O próprio sistema de votação é interessante: complicado o suficiente para instigar, simples que chega para entender. Não que seja perfeito, há quem critique o peso dos juris de países. De qualquer forma, agrada.

Óbvio que o Eurovision funciona de maneira diferente das premiações tradicionais norte-americanas. Logo, seu formato não pode ser fielmente reproduzido por elas. Não é isso o proposto.

Todavia, cerimônias como a do Oscar poderiam ver os elementos que fazem da competição europeia um sucesso e tentar dar uma chacoalhada em suas próprias estruturas. Alguns pontos: diminuir ou eliminar as propagandas; criar espetáculos grandiosos; fazer reformulações para deixar tudo menos previsível; prestar homenagem aos vencedores num novo formato; aumentar a interação com o público; aumentar de alguma forma o suspense de quem vencerá.

Abaixo, deixo a final do Eurovision de 2023, caso alguém tenha perdido e ficou interessado em ver:

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