A Netflix protagoniza o que provavelmente será a maior polêmica do Festival de Cannes de 2017. Sua decisão de não exibir em salas de cinema francesas os dois filmes em competição gerou rápido movimento em resposta.
Para Pedro Almodóvar, presidente do júri deste ano, a nova forma de consumo não pode tentar substituir as já existentes. Sua posição está alinhada com a do próprio festival, que tornará, a partir de 2018, inelegível qualquer película que não for exibida posteriormente na tela grande.
Para fazer uma análise do quadro é preciso levar em consideração que a indústria cinematográfica funciona a partir da lógica de apresentação em festivais para ganhar visibilidade e prestígio, exibição nos cinemas como principal forma de retorno ao dinheiro investido e, no fim do processo, venda de direitos para a televisão.
Outro ponto importante para destacar é que a Netflix revolucionou a forma de assistirmos TV, mas ainda assim é TV, apesar do habitual descolamento ocasionado pela mudança de plataformas e forma de consumo. Quando falamos em Netflix, é preciso associar a imagem da empresa com suas concorrentes naturais, que são Globo e HBO, por exemplo, e não grandes estúdios, como Paramount e Universal.
Logo, ela avança em terreno hostil. Vale lembrar que já foi peça central de polêmica em 2015, quando tentou colocar Beasts of No Nation, um dos melhores filmes do ano, no Oscar. A primeira grande batalha foi ao querer projetar o drama no cinema apenas para torná-lo elegível enquanto a obra já estava disponível no seu catálogo. Passada essa fase, teve de enfrentar o preconceito da Academia, que simplesmente ignorou o trabalho magistral de Idris Elba, além da própria produção.
A regra para tornar um filme apto para o Oscar não é nova, tanto que trabalhos primorosos como o de Michael Douglas em Behind the Candelabra, telefilme de 2013, só são agraciados com prêmios em Emmy e Globo de Ouro, em categoria televisiva.
Estaria a Netflix fugindo do seu espectro de atuação? De certa forma, sim. O que não é nada ruim, claro. Recentemente ela levou, por exemplo, um Oscar pelo ótimo documentário em curta-metragem The White Helmets, uma visão dolorida da guerra na Síria.
É interessante que a Netflix tente quebrar a lógica do mercado, e perfeitamente compreensível que a indústria do cinema se proteja de alguma forma. Quando você exclui a maior fonte de renda do processo de distribuição da obra, está fragilizando estúdios.
É ótimo que as pessoas tenham a comodidade de assistir a um filme novo onde quiserem, como bem entenderem. Todavia, isso retira a experiência única obtida na sala escura. Diferenças gritantes deixadas de lado, é algo semelhante a filmar uma peça teatral, entregá-la para o público e cortar o laço das pessoas irem ao teatro. Cabe indagar até que ponto você está dando opções e a partir de onde está interferindo de maneira muito determinante em uma arte.
Tornar a sala de cinema um item cada vez mais dispensável pode, obviamente, ser benéfico ao ponto das empresas quererem fazer dessa uma experiência cada vez mais inesquecível. Nos últimos anos, ressurgiu o 3D e nasceu o Imax. Certamente outros avanços virão na tentativa de reter público.
Verdade seja dita, por mais que se tente frear mudanças, elas invariavelmente vão acontecer. O caso da Kodak, que desmoronou por causa da fotografia digital, é uma prova de que se adaptar ao novo é bem melhor do que ignorá-lo.
Cabe à Netflix tentar ganhar espaço. Se puder concorrer com suas obras em diversas premiações, ótimo. Se não puder, não fará realmente tanta diferença assim. A indústria tradicional, por outro lado, tem todo o direito de proteger seu capital. Caso seu conservadorismo não esteja em conformidade com o futuro, será tragada para o passado cedo ou tarde.